Quem cresceu na década de 1980 e 1990, normalmente se recorda de Xuxa como a rainha inatingível que chegava e ia embora de uma nave todas as manhãs na TV. Mas a versão 2020 da apresentadora lembra muito pouco a mulher aparentemente ingênua, que conquistou crianças e adultos por todo o Brasil e América Latina. Aos 57 anos de idade, mais madura, belíssima, e sem papas na língua, ela acaba de lançar seu livro autobiográfico, Memórias (Globo Livros), em que conta sua história, conquistas e dificuldades. Nascida em Santa Rosa, no Rio Grande do Sul, Xuxa trata no livro de temas felizes, alguns nem tanto e outros bem duros. Ela não se poupa e não poupa detalhes do passado ao relatar os abusos que sofreu na infância, por exemplo. De maneira crua e dura, surpreende ao reviver, com detalhes, o sofrimento que passou. E diz que o faz por um motivo nobre: ajudar quem também está passando por isso.
“Depois que virei mãe, me senti na obrigação de falar. Acho que você quer proteger todas as 'Sashas' do mundo. Sei que é impossível, mas é o que se passa na minha cabeça. Quero que o mundo da minha filha, da minha neta, seja melhor. E, quem sabe, eu me expondo alguém crie coragem para denunciar mais um doente, um criminoso desses? Já terá valido a pena”, avalia.
Outra parte considerável do livro é dedicada a assuntos relacionados a veganismo e proteção aos animais. Ela adotou a dieta e estilo de vida que elimina completamente alimentos e produtos de origem animal há quase três anos - embora seja vegetariana desde a adolescência - e conta que até a vida sexual melhorou com a mudança.
Nesses mais de 40 anos de carreira, a apresentadora, atriz, cantora, filantropa e ex-modelo ainda denuncia a cobrança pela "eterna juventudade", a vontade de ser avó e se posiciona, fortemente, contra a homofobia e outros preconceitos. Revela ainda detalhes da cumplicidade com a mãe, Alda, da chegada da filha, Sasha, e dos relacionamentos midiáticos que teve com Ayrton Senna e Pelé.
"Falar sobre meus ex é sempre estranho. Sei que é minha história, mas tem a vida de outras pessoas envolvidas. Não falar deles também seria apagar minha história, então, tentei achar esse meio termo", relata na entrevista.
"Sempre digo que existem dois tipos de pessoas no mundo: as que enganam e as que são enganadas... E adivinha quem eu sou?"" Xuxa Meneghel
Esses pontos do passado ficaram lá, já que ela está feliz à beça com o marido Junno Andrade, com quem afirma, categoricamente, que quer passar o resto da vida. "Ju é minha música, é a risada mais gostosa, é o colo que foi feito pra mim, é o cheiro mais perfeito, é o sexo para o meu tamanho e forma", derrete-se.
Memórias tem prefácio escrito por Rita Lee, a quem Xuxa define como uma "espécie de guru para todos nós, artistas", e toda a renda que ela obter será doada à Aldeia Nissi, em Angola, e a santuários que resgatam bichos de maus-tratos no Brasil. Lançado há menos de uma semana, o livro já teve mais de 100 mil unidades vendidas e está em primeiro lugar nas livrarias e e-commerces de todo o país.
Você, pelo jeito, não parou na quarentena: escreveu suas memórias e livros infantis. Como foi a experiência?
Xuxa: Ter uma coluna na Vogue me faz pensar e escrever muito sobre as coisas que estão acontecendo: política, discriminação, racismo... Então, minha cabeça começou a pensar: Como fazer isso valer ainda mais a pena? Como transformar em algo para ajudar alguém? Foi quando o Gui [Samora, editor da GloboLivros] me presenteou com o livro da Brigitte Bardot ['Lágrimas de Combate'] e com os livros infantis da Rita Lee. Me acendeu uma luz. Eu poderia ajudar causas ligadas a bichos, veganismo e, quem sabe, crianças na África. E foi o que aconteceu. Em pouco tempo, estava mandando a história da Maya, do Betinho [que são os infantis] e também meus desabafos, minhas histórias, enfim, minhas memórias.
De onde veio a ideia da doação dos royalties? Entendo que, também por isso, esses projetos dos livros sejam muito importantes para você.
Xuxa: Se eu te disser vai parecer piegas, mas vamos lá: toda noite eu falo com Deus e peço a Ele para me mostrar o caminho para que eu possa ajudar as pessoas. Depois que eu deixei de manter minha Fundação, que durou 29 anos, eu me pegava com uma sensação de dever não cumprido e acredito que isso foi só uma portinha para muitas coisas que eu possa vir a fazer para continuar ajudando, sem necessariamente estar à frente de uma ONG, de uma instituição ou de uma fundação. Eu sei que posso ajudar e vou conseguir.
De que tema foi mais difícil escrever no livro?
Xuxa: Falar sobre meus ex é sempre estranho. Sei que é minha história, mas tem a vida de outras pessoas envolvidas. Não falar deles também seria apagar minha história, então, tentei achar esse meio termo. Claro, isso é uma opinião minha, cada um deve fazer como achar que deve. Mas foi um pouco difícil para mim.
Você trata com muita franqueza o caso dos abusos que sofreu na infância. De onde tira forças para tratar de assunto tão doloroso?
Xuxa: Depois que virei mãe, me senti na obrigação de falar. Acho que você quer proteger todas as “Sashas” do mundo. Sei que é impossível, mas é o que se passa na minha cabeça. Quero que o mundo da minha filha, da minha neta, seja melhor. E, quem sabe, eu me expondo alguém crie coragem para denunciar mais um doente, um criminoso desses? Já terá valido a pena.
Em certo ponto do livro, você diz que já foi muito enganada na vida. É uma característica sua confiar muito nas pessoas?
Xuxa: Sim, faz parte da minha personalidade, sempre digo que existem dois tipos de pessoas no mundo: as que enganam e as que são enganadas... E adivinha quem eu sou?
Achei curioso a Rita Lee ter sido a primeira a ler o livro. Como reagiu ao texto dela falando tanta coisa linda sobre você?
Xuxa: Foi um presente, já que a Rita é e sempre será uma espécie de guru pra todos nós, artistas. Ela ama bichos, crianças... Digo que somos do mesmo planetinha e da mesma tribo, mas claro que ela seria a “xamã” da nossa tribo. Ler suas palavras acalmou, aquietou minha cabeça e coração, já que o livro foi escrito por mim e, se errasse, não teria volta. E quem sou eu na fila do pão? Ela já escreveu um monte -- -- de livros e de músicas -- e é traça, lê de tudo!
O que espera do futuro? Você diz o quanto quer ser avó no livro...
Xuxa: Espero que as pessoas me deixem envelhecer com todas as minhas rugas e com tudo que virá com a idade. Que tenham mais respeito pela minha história. Acima de tudo, que me deixem viver o que a velhice vai me proporcionar: meus netos e minhas escolhas, que com certeza não serão as mesmas escolhas de muita gente.
O que aprendeu [ou aprende] com as crianças?
Xuxa: Nossssssa... Isso é um outro livro. E tenha certeza que continuo aprendendo diariamente.
E não dá para não falar do lindo capítulo sobre o Junno. Tem um combo amor & sexo, cumplicidade, planos de vida... O que ele causa em você?
Xuxa: Ju é minha música, é a risada mais gostosa, é o colo que foi feito pra mim, é o cheiro mais perfeito, é o sexo para o meu tamanho e forma. O Ju veio pra somar. Que bom que hoje eu sei valorizar o que tenho, pois lá atrás, se eu tivesse ficado com ele, talvez não teria dado o devido valor. Repito: ele é o cara com quem quero morrer ao lado.
Em um dos capítulos, você se posiciona fortemente contra o preconceito, contra o machismo, contra a homofobia... São temas cada vez mais presentes em suas falas. Você considera que o tempo te fez evoluir ou repensar alguns aspectos sociais?
Xuxa: Estamos vivendo um momento no qual precisamos colocar para fora o que não aceitamos. Se ficarmos calados, somos coniventes e, pior, nos igualamos a tudo o que nós não achamos certo. Então, eu, como qualquer ser humano, público ou não, tenho que falar! Me calar? Nunca.
Você diz, no livro, que é cruel envelhecer na frente do público. As cobranças por uma irreal e impossível juventude eterna te machucam?
Xuxa: A mim não, mas às pessoas que não suportam ver meu colágeno se suicidando. Tem muita gente que ia ter orgasmo se eu colocasse botox ou me esticasse. Te digo: pode ser que um dia eu faça, mas não seria por eles e sim por mim. O que me assusta é como minhas rugas, minha idade, meu corpo se modificando ou minha careca incomodam tanta gente.
O veganismo é um capítulo forte no livro. Espera que as pessoas leiam e repensem hábitos de comerem carne, por exemplo?
Xuxa: Espero. Sei que quem nasce sem vontade de mudar o mundo ou sem vontade de se melhorar como pessoa, nunca se sentirá mal com a dor e com o sofrimento dos animais. Seja no seu prato ou na vida, a ignorância e a ganância andam juntas. Existem muitos documentários que falam, mostram, provam tanta coisa errada contra os bichos... Primeiro, as pessoas não querem ver, pois não querem mudar seus costumes; depois, elas não querem se sentir mal, culpadas por fazerem parte disso tudo. Elas estão bem, então, pra que mudar? Que morram mais bichinhos pelo “prazer” de sentir um gosto qualquer na boca. Respondendo à sua pergunta: as pessoas que querem mudar, vão mudar. Não por mim e sim por elas ou por eles [os animais].
Entre seus livros infantis que vai lançar também pela GloboLivros, você está fazendo um sobre a Maya. Esperava tanta repercussão só pelo fato de ela ter duas mães?
Xuxa: Você diz tanta discriminação, né? Sim, esperava que o livro saísse para eles lerem e terem do que falar, mas a loucura dessas pessoas é tão enorme que não cabe dentro delas. O que mais me choca é usarem o nome de Deus, isso me deixa sem palavras. Como um livro que fala de amor pode gerar ódio em certas pessoas? Isso me faz crer que esse povo não é de Deus, não!
Sasha nasceu e cresceu sob os olhares atentos do público. Apesar de optar por uma menina “normal”, que não escolheu uma carreira artística, hoje tudo o que ela faz, ganha destaque na mídia. Como você e ela lidam com essa fama? O que nela te dá mais orgulho?
Xuxa: O que mais me dá orgulho nela? Seus atos, seus pensamentos, sua personalidade, seu amor com o próximo, suas atitudes como ser humano, seu amor com a natureza, com Deus, com idosos e com crianças... Ela é meu orgulho, minha vida e aguardem: mesmo ela não querendo aparecer, suas atitudes falarão por ela.
"Tem muita gente que ia ter orgasmo se eu colocasse botox ou me esticasse"
- Xuxa Meneghel -
Créditos
Reportagem: Soninha Vieira (@soninhacv)
Fotos: Brunno Rangel (@brunnorangel)
FONTE: https://revistaquem.globo.com/Capa/noticia/2020/09/xuxa-espero-que-pessoas-me-deixem-envelhecer-com-todas-minhas-rugas.html